segunda-feira, 9 de junho de 2008

Quem Gosta de Gatos?

Examinava furtivamente pela janela do quarto que deixara aberta a fim de identificar o dia, que já era noite. Ali, em cujo estado corporal deitada estava e que só alternava a posição das pernas às vezes, espreitava o lado de fora a constatar o tempo. Teimava um olhar alheio a observá-la rígida e em todos os detalhes.
Escancarou a janela, olhou fixo para um lugar como quem soubesse exatamente o que procura. Inclinou o corpo acompanhado do impulso do olhar, para frente e para baixo, ao mesmo tempo. Em seguida, olhou em toda a volta. Acendeu um cigarro.
Lúcia sempre que sentia-se muda em relação a si burlava a racionalidade. Ela dizia que o importante é sentir não importando o quê. E que todo o resto é bobagem.
Lúcia não tinha namorado. Na verdade, nunca namorou.
Enquanto deixara o cigarro queimar lentamente entre os dedos, raramente levando-o a boca, tragava qualquer desejo de acontecimento. - olhava para os lados.
Quando criança, Lúcia vigiava-se no espelho por inúmeras vezes ao dia, a boca antes pintada de vermelho tinha de dispor o propósito da vitalidade da cor. Retocava os lábios a todo o momento. Lia palavras difíceis bem de frente ao seu reflexo, encenava caras e bocas. A escolha das palavras se dava pela sonoridade que elas emitiam ao serem entonadas. A entonação fazia toda a diferença. E aquele batonzão cubria-lhe com alguma veracidade a tentativa de apontar a idade que não tinha.
Lia e fazia poses, algumas sensuais. Sua mãe adorava dizer para quem quisesse ouvir que era menina engajada e que tinha futuro. Chegou a levá-los quando criança, ela e o irmão, num desses estúdios caça talentos. Lúcia nunca falou com a mãe a respeito e nem com mais ninguém, mesmo depois de grande. Também não disse que não gostava, era de seu agrado conhecer lugares novos, principalmente os frenquentados por adultos.
No início da madrugada, Lúcia observou a lua e a luz forte que vinha do alto em direção a todo o resto. Retornou e retomou o olhar ao horizonte do emaranhado de casas até à ponte Rio-Niterói.
Antes mesmo que voltara a deitar-se, conservou a abertura de fresta a espiar pelo pequeno espaço; notara que há horas, em cima do muro, havia um bichano, e que este estava no mesmíssimo lugar e posição de quando abrira a janela pela primeira vez. Lá estava ele, do outro lado da rua. Fitando-a. Era ele, o tempo todo.
Nem sabia, mas gostava de gatos.