sábado, 20 de março de 2010

O Sultão, Anywhere I Lay My Head

Não era um simples sultão, de poder reduzido, ou existência proscrita. Dominava precisamente vinte milhões de criaturas. E, por isso mesmo, seus hábitos não podiam deixar de refletir a intensidade do seu poder. Embora os cultivasse distraído, mesmo porque, a pretexto quem sabe de humanizar-se, dizia igualmente ter plantado árvores, dizimado espécies vivas, como qualquer de seus súditos.
Havia ele proibido em torno de si toda a manifestação exaltada, para se iludir de que o amavam sem regras. Ao mesmo tempo acomodara-se aos afetos como aceitava as bebidas que já pelas manhãs lhe eram conduzidas ao leito. Como medida de disciplina, impusera ao exagerado número de mulheres do seu harém um sistema, a não se transgredir pois a punição alcançava a pena máxima, pelo qual iam elas se sucedendo em ordem pelos seus aposentos, ainda que seu súbito desejo por alguma delas determinasse a alteração do rodízio. Era ele o primeiro a dar o exemplo, por se saber o único, entre vinte milhões, a estabelecer padrões exemplares.
Mas, após procriar dezenas de filhos, ter possuído tantas mulheres que o prazer já o confundia, e temporariamente dedicar-se a meninos de rara beleza, a natural dispersão destes atos o obrigou a refugiar-se em seus jardins, mais tempo que normalmente lhe tomaria uma simples meditação.
Claro que este proceder inquietou o grão-vizir. E chamado o sábio do reino para estudar o fenômeno, logo não hesitou em determinar a procedência do mal. Aquela nostalgia nada mais refletia senão a gloriosa maturidade do sultão. Acentuando o sábio que haveria ele de piorar à aproximação da velhice.
O grão-vizir não resistiu ao desespero. Ainda que ostentasse uma vida diariamente configurada no poder daquele homem, compreendia também ser amor os destroços que o sultão havia nele plantado. Uma estranha amizade, sem dúvida, em que se vira sempre ameaçado de morte, pois a fúria do sultão às vezes atingia reclamos tão extremados, sem porém deixar de cultivar os recursos da gratidão. Mas, se durante este aprendizado nenhuma verdade lhe foi permitida senão aquelas que o sultão fazia brotar do solo sagrado de si mesmo, havia-lhe ensinado em troca a apreciar a vida que ele, em sua generosidade soberana, impedia de reclamar. Do mesmo modo que a emoção do grão-vizir era secreta, a do sultão por sua vez engrandecida por jamais lhe cobrar uma dívida que seu poder antes cuidou de aumentar.
Como lhe havia assegurado o sábio ser aquele estigma a simples atuação de uma futura velhice, nada se podendo fazer para vencer matéria tão natural, perdeu-se o grão-vizir em meditações, sem deixar, no entanto, de consultar os ministros, que logo imaginaram um ciclo de festas e homenagens.
A verdade é que desde pequeno o sultão abolira homenagens, precocemente assim manifestando sua independência em relação ao poder. Argumentara numa de suas raras palestras que qualquer poder que pretendessem acrescentar-lhe nada mais seria senão a expressão de um poder a que sempre se habituara, porque nasceu entre ele e palha seleta; o poder que nele reconhecessem haveria de se tornar com os dias o poder que passavam a lhe dever; e o poder afinal que a sua natural inclinação para o comando não houvesse previsto ou mesmo determinado a conquistar, passaria a ser o poder que admitia a fraqueza, o que se tornava impossível uma vez que o próprio extrato do poder impedia esta doutrina.
Repelia a ostentação cuidada, a ostentação cujo início, organização, fissuras, ele pudesse perceber. Já não o atormentavam os delírios da multidão, as contínuas paternidades, os contornos e as montanhas do reino, sequer a concepção abusiva de dominar vinte milhões de criaturas, todas distribuídas em terras suas, respirando o ar seu, bebendo a água que ele consentia circular nos rios com limpeza regular.
Ainda reconhecendo sua austeridade, ordenou o grão-vizir que todos do reino contribuíssem com uma certa quantidade de ouro e pedras preciosas, visando à confecção da mais poderosa espada que o mundo conheceu, adorno que além de simbolizar naturalmente o poder, talvez viesse a alegrar o coração severo do soberano. Porém, o material recolhido ultrapassou de muito o que haviam eles planejado, assim se viram obrigados a concluir que uma espada apenas, ainda imitando o tamanho e a pujança de um canhão, não viria a absorver aquele exagero. A solução seria fundir tantas espadas quanto ouro ainda restasse.
Avisado da cerimônia, o sultão entre grave e reflexivo olhou as espadas como se visitasse os mortos sagrados daquela terra, assunto pelo qual jamais se viu ele pronunciar, ou manifestar emoção. Parecia ter invadido aquele terreno da alma onde a existência do prazer passa a depender de tantos absurdos, ou atinge ele o triunfo se pudesse gritar sem temer a voz e o resultado do som. Abandonou os salões e por longos dias absteve-se de frequentar mesmo os seus jardins preferidos.
Apesar do seu doloroso estigma, acedeu em comparecer à última das homenagens programadas no propósito de o tornar feliz. Quando se iriam sacrificar diante do povo aglomerado na praça as mais lindas virgens do reino, exatamente sete delas. E dava pena observá-las ao longo do altar, os seios exibindo uma paisagem de ourivesaria e repouso. No entanto, logo que se imolou a primeira virgem, imediatamente o rosto do sultão, até o momento grave como uma pedra, sofreu uma profunda alteração. E não que se deixasse atingir pelo sangue ali esbanjando-se à medida que a faca experimentava o corpo tenro, mas pela presença solitária de um pássaro, cujo voo desfrutava de uma liberdade que parecia degenerar de tal modo exibia-se. E que unicamente após destacar as qualidades essenciais da sua espécie, pousou precisamente no galho da árvore cuja sombra protegia o sultão.
No entanto, longe deste atrevimento precipitar os sentimentos amargos do sultão, afinal esta atitude não se refletia no pão diário daquele reino, mais exaltou-lhe o interesse. E por obedecer a uma fatalidade que agia tão poderosa a ponto de confundir-se com o que ele mesmo não definia, foi dispensando a vergonha para investigar aquele animal, na exibição de um fervor incomum entre homem e pássaro.
Por sua vez o povo, desprezando o sacríficio das virgens, passara a imitar o sultão, todo o humano interesse naquela miniatura alada. Sem uma voz lamentar a matança em que não se punha qualquer apreciação. Via-se no sultão a apoteose de um sentimento. Olhava ele o pássaro tão firmemente como se em vez de mulheres agora passasse a desejar animais. Aquele pássaro pequeno e soberbo, acrescente-se.
Mas, entretido no pavor de perdê-lo, ia o sultão reconhecendo naquela presença um insulto que lhe cabia medir. Não exatamente um insulto, quem sabe mesmo não seria aquele pássaro a sua própria liberdade agora agonizante entre os excessos da sua vida. Agitou-se delicado, pois não lhe era fácil esconder o sentimento que o fazia fruir o equívoco, o estranho aviso da derrota. A raiva que afinal surgiu em seu peito parecia-lhe de natureza grata. Abastecia-lhe o corpo com a impertinência generosa de que se depende para afinar os metais. E ainda que fosse colocado na vida do seu corpo a súmula dos perigos e das omissões, os dons enfim que iam mesmo se tornando familiares, através dos seus olhos assumia o pássaro a causa universal de todos os ofendidos. Diligente e raro, dominava ele o seu reino.
Assim ia-se desenvolvendo a guerra dos santos, mais do que disputarem a santidade, lutavam pelo amor indispensável para se assumir qualquer crime. Em breve, homem e pássaro se apurariam no nojo que mesmo matéria impecável desperta quando se morre por dentro das coisas limpas. Mas, depois de experimentar o sultão o sentimento da raiva, e não podendo conviver indefinidamente com ela pois que nele os sentimentos abrasavam-se tão perfeitos que se supunham início e fim de todo atrevimento - foi o medo mascarando o seu rosto. Não têmia exatamente perdê-lo, esta continuava sendo a sua verdade, temia sim a certeza de que esta perda se daria breve, como tomba o fruto da árvore e apesar de natural sofre a agonia da queda, o despreendimento dos galhos uterinos, que é a sua perfeição - e que este tempo breve talvez fosse a anunciação do inverno, a harmonia dos inimigos em posição de guerra, ou mesmo o ventre de uma mulher produzindo envergonhado o que seu sexo estéril nela depositara, numa simulação de bravura.
Criou-se pela primeira vez em sua vida uma rara expectativa. E porque sabia, pois seu poder baseava-se em certas certezas, agonizava na dúvida de tanto amor. De um amor que poderia florescer como nenhum outro, como nenhum outro o ampararia na sua verdade aguda. Dependia agora da excelência de uma dor para provar um sentimento, da admissão do mesmo amor para aceitar esta audácia e não sucumbir a seu fascínio.
Ele começava a compreender que a ação daquele pássaro, acima de significar a morte para a sua casa, o estava introduzindo no reino das ciências exatas e dos depoimentos isentos. Uma sabedoria excessiva para ele e seu trono. E era pássaro o único homem que o enfrentava por se ter tornado o pássaro o homem quem sonhou um dia encontrar, que se introduzia como inimigo por dispensar a sua amizade, desprezar seu caráter, seu poder, os inúmeros filhos e mulheres, seus maravilhosos jardins. Este o homem raro que o sultão inventava no pássaro, e ele unicamente conhecia a loucura de sua manobra.
Ainda buscou controlar-se, distrair o animal com seu desapego, falta de atenção. Como se lhe dissesse o tempo todo, olha, fique mais um pouco sobre a minha cabeça, porque eu não preciso de você, não há entre nós o menor compromisso, vê como ainda é livre embora eu o esteja amando?
Parece-lhe a paisagem exaltada sob o império da sua liberdade solitária, uma vida envergonhada que passava agora a depender de façanhas imortais. Antes, a liberdade fora o imperativo do seu dever. Nestes instantes denunciava o avanço de uma doença a que todos de sua raça estariam sujeitos sob a graça de uma hereditariedade distraída. Valia mais o pássaro do que vinte milhões do seu reino, e ainda não perdoava aquela ameaça que lhe impusera o sentimento de um tesouro perdido dentro das palpitações de uma terra reservada, especialmente ele que até então rejeitava a claridade de todo sol universal.
Ele moveu as asas delicado. A sua frase colorida solidária. Mas arma agressiva embora inocente. E o sultão já não mais aceitando os atropelos da vida, a suprema tentação de modificar a ordem e as obrigações de um estábulo onde os animais instalam-se dominantes, afinal atingiu o ódio e ingressou simples e grosseiro no reino dos mortais. A nova condição trazia-lhe a regra abominável de sobreviver. Obrigado a pedir ao povo, ensine-me as regras mais simples, sei bem que vocês a conhecem todas e só assim poderei frequentar, protegido, este mundo de duendes e feiticeiros. Mas o orgulho da medalha o deteve. Apenas o grão-vizir e seu tímido amor perceberam a emancipação que ameaçava o reino caso o pássaro triunfasse a ponto do povo vir a compreender aquela lucidez alada que despertara no sultão um olhar iluminado e perdido, como em nenhum momento se percebera no mesmo homem.
Mas aquele pássaro obstinado, sobre o galho que se tornara seu paraíso, fazia suas vantagens reverberarem para que todos as conhecessem. E movido ainda pelo poder que era o poder que só ele compreendia, que conjurava qualquer ação futura, perdeu-se no espaço num voo em tudo igual aos que os de sua raça, executam diariamente, e nem por isto merecem a morte. Tamanho o seu conforto em pleno voo que se duvidou que ele ou outro, ainda que buscasse proteção nas próximas árvores, pudesse sobreviver após experiência tão poderosa.
O sultão ainda ergueu o braço, talvez lhe pedisse, ainda não, um pouco mais por favor, não compreende que a partir de você inicia-se a minha próxima compreensão! Logo fez grave como quem acaba de criar uma raça e nem a apreciação de uma espécie isenta de defeitos lhe desse alento. A indiferença ia-se tornando uma postura singela. Sua valentia no entanto era rara naqueles dias.
Quando o enterraram, seu filho mais velho assumiu o poder. O poder, aliás, sempre estivera naquela família.

sábado, 6 de março de 2010

A Terça Parte de Sequências de Ave-Maria

Elêusis tinha o hábito de morrer. Assumia diariamente novas formas. Um espetáculo a que eu ia me esquecendo. Sem jamais saber se ela era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que me contemplava. Ou havia se transformado em água de um rio em tormenta, para deste modo viver um estado difícil.
Sempre lhe perguntei se não seria esta dor exagerada. Ela se esfregava na grama, até eu perder de vista. Já de volta o seu sorriso cancelava palavras. Mas eu me comprazia olhando em torno. Havia a certeza de Elêusis ocupar todas as coisas. Porém arrancando uma Pêra cujos delicados contornos recordavam os seios de Elêusis, eu surpreendia o protesto aflito da fruta. Procurava então investigar se involuntariamente havia mutilado Elêusis. Afligia-me que tardasse seu regresso às estruturas humanas. Cedia-lhe todo o meu tempo, até verificar que desta vez não havia ela visitado a fruta, e eu a poupara.
Não era fácil tocar nos objetos sem esquecer que de algum modo eu poderia feri-la. Às vezes, eu pensava se teria ela inventado esses jogos para me perturbar, ou simplesmente obedecera às suas virtudes de camaleão. Jamais admitiu se além de mim, alguém mais ousara confessar estes encantos, seu jeito atrevido de assumir a natureza.
Eu estabelecera em seus corpos os pontos cardeais, as estações climáticas. E em minucioso exame procurava descobrir de que fenda do seu corpo havia saído o coelho que eu havia surpreendido com o mesmo olhar de Elêusis.
Suspeitava que toda ela era mutável. Suas pernas, seu ventre de cristal, a carne inteira hábil convertendo-se em raíz para amparar a ideia de abundância. Ela apreciava a sondagem em que o desejo havia evaporado, e me via livre na fantasia. Tocava comovida meus cabelos e os batizava: pêlo de andorinha. Um capricho revelando que ainda fugazmente havia ela um dia habitado aquela espécie. Mas, eu me sabia de origem terrena, e ainda que a quisesse copiar não passaria de um corpo que o espelho confirmava escravo e de recursos modestos.
À noite Elêusis sofria transformações mais profundas. Nunca porém se recolhendo vestígios com que a localizar. Onde ela se estenderia, em que mineral se fizera. Como encontrar seu olhar de exaltada melancolia, que bem se compreendia por adotar ela sem querer formas repugnantes, quantas vezes permanecendo em tais estados por tempo indeterminado, mesmo correndo o risco de jamais regressar ao aspecto humano. Também sua rica natureza estava sujeita a equívocos. Teria um dia ferido animais miúdos, como se tivesse dentes longos, patas, reduzida ao poder de fera.
Eu a procurei sem falhar todas as noites jamais perdendo a esperança. Onde ela estivesse eu devia estar. Pisando o solo que Elêusis tornava mágico, por praticar magias. Para dar-lhe prazer, eu me fingia peixe, nadando apropriava-me do modo íntimo de quem possui guelras. Cuidando para que meu gesto não se confundisse com a aranha, não pretendia assustar Elêusis, ou desperta-lhe lembranças difíceis.
Eu me dizia não ser Elêusis a única entre os mortais a abandonar o corpo na promessa de uma outra forma, pois não a estava eu imitando? Seu poder eu perdoava por já não viver sem ela, aquela brincadeira de desaparecer eu gritando Elêusis. Embora voltasse sempre trouxe um olhar diferente. Não brinque, Elêusis, um dia ainda eu a proibirei de brincar.
Elêusis resolveu partir. Conservar-se em retiro por três dias nas montanhas. Preparou queijo de cabra, nossa obsessão. E que outro alimento viera de tão longe, vencendo a antiguidade, arrastando sua sabedoria de pedra. Ainda pão, cebola, e o vinho daquelas uvas que Elêusis e eu havíamos amassado até manchar nossos rostos. Então eu a limpara com a língua em golpes ásperos, sem a ferir ou transmitir doença. Não se esqueceu da manta, que a teceu por uma semana imitando Penélope, sem admitir o gesto escravo da outra, abdicar da sua liberdade. Talvez ela soubesse que se eu não vencia mar egeu, competia-lhe o domínio destas águas.
Não se esqueça jamais, nossas armas são idênticas, ela me dissera há muito tempo. E se foi sem despedida. Nem lhe pude perguntar você vai ampliar o seu poder, ou submeter-se às tentações. Quando quis segui-la ela disse: se me segue, não regresso nem sob forma de vento.
Desde então me fixava no padecimento de sua pele delicada, sua voracidade de abutre, seus recursos de terra. Ia eu me enfraquecendo sob o império daquela obstinação. Quando caiu o temporal pensei: ela bem merece. Esquecia seu milagre de incorporar-se à chuva ganhando força. Mas, confiava que nestes dias se obstivesse de atos desta natureza. Se elegera a montanha, a solidão, e o prazo de três dias, seguramente pretendera pela primeira vez assumir os riscos do corpo humano.
Sim, eu confiava que Elêusis sofresse, Elêusis resistisse à própria formosura, simplesmente submissa a uma imagem sem reflexos e que não se repetiria. Assim talvez perdesse de ingressar na natureza alheia, para conformar-se com os limites do seu corpo, e a dor a amansasse.
Uma difícil cruzada, tudo podendo acontecer. Até Elêusis perder na paixão de ser o que não era, e esquecer a fórmula que habitualmente a conduzia a seu estado anterior, e que eu conhecia. Nunca mais regressando, ou regressaria sob forma não identificada, eu esbarrava nela sem a reconhcer, Elêusis com dificuldades de explicar a sua perdição.
Eles se arrastavam lentos, aqueles dias. Eu apaenas deixava a casa para visitar o jardim. Dali se enxergava a montanha onde estaria Elêusis, quem sabe cravada nas pedras. As divindades outrora ali se reuniam. Elêusis as revenciaria sem dúvida. Nunca foi o que se conhece, eu a explicava. Do jardim, eu buscava afastar insetos, distância, conquistar visão de águia, para a ver dormindo, ah, a sua fantasia sempre me alimentou.
Jamais tranquei a porta. E não por Elêusis, ela jamais interromperia suas cerimônias por mim. Mas quando o desespero me obrigava a olhar as montanhas, eu alcançava o jardim sem enfrentar obstáculos. Somente algumas horas após o terceiro dia, descobri. Elêusis mastigando frutas sobre uma árvore. E não se equivocara de árvore, conhecia-as todas. Aquela sempre fora a sua eleita. Dizia que mesmo entre os minerais havia o mais amado, quanto aos vegetais os catalogava com uma estima oscilante. E dentre as criaturas, qual a amada, perguntei-lhe com invencível aflição. Ela sorriu querendo expressar quem mais senão você. Rimos naquela tarde como só voltaríamos a rir quando me trouxe de presente, em vez da sacola em que vinha há muito tempo trabalhando, um ovo longo, um ovo que eu jurava não ser de galinha, avestruz, pato, nenhum animal amigo o teria colecionado em suas vísceras.
Ela escandira: este é raro, o mais precioso, para isso venci todas as espécies, conheci defeitos, pujança, hesitações, como foi difícil trazer afinal a escuridão esta coisa santa. Foi ela então mexendo com o rosto do mesmo modo que eu fazia quando não podia entender o que era acima das minhas forças. E porque eu percebi que por breves instantes estivera ela roubando a minha voz, as minhas palavras, os meus pensamentos, a longa letargia através da qual eu venci a terra em busca de uma certa ordem, a ponto de mais um pouco ela exibir em seu corpo o meu corpo - começar a rir, rir porque tivemos medo, rir porque não teríamos suportado levar às últimas consequências aquela alegria.
Pedi licença para subir à arvore. Ela logo desceu, dispensando meu socorro. Sentou-se devagar, parecia cansada, o que eu atribuía à viagem. De nós dois, ela era o herói, cabiam-me os despojos abandonados, pois eu vivia do seu momento histórico. Você constrói a minha história, confessei-lhe uma vez.
Nesta tarde eu confiei que Elêusis viesse a mim dizendo: como foi difícil, ou, milagre sem você perto para apreciar não tem graça. Percebi suas mãos trêmulas, em sucessivos movimentos alisava certas partes do corpo. Eu não sabia em que reino situá-la. Quem desaparece tanto tempo tem direito a regressar diferente, implantar por isto mesmo novos hábitos, vir uma outra pessoa. Eu corria todos os perigos, perder Elêusis sempre estivera no meu mapa, eu sabia desta verdade. Quando resolveu deitar-se, não se agitou como do seu costume. Não consentiu que eu a tocasse. Pela manhã assumia uma docilidade jamais surpreendida nela. Durante dias agiu sem elasticidade. Não querendo deixar a casa, como se não a atraísse o mundo lá fora. Também não pediu que eu a deixasse para praticar na solidão seus atos de milagre. Eu sim a forçava, o que seria de Elêusis sem o transformar-se assíduo. Deixava a casa prometendo voltar bem mais tarde, não me aguardasse antes da noite.
Então eu a imaginava convertida em tudo que lhe acendesse a paixão, sem poder resistir à tentação de se provar, e sair forte. Seu amor pelos estranhos haveria de prevalecer. Mas ela não se aproveitava da minha ausência. Bastava olhar para ela. E por muito tempo viveu assim. Em nenhum momento pretendeu transferir-se para outra terra, ou mencionou a riqueza de outrora, ainda que eu a estimulasse. No entanto, agora que não deixava a casa, eu não a sentia minha. Só muito depois foi engordando. Comecei a imaginar que dentro dela alguma coisa alterava-lhe o corpo e já não dependia de sua vontade expulsar o que a habitava agora. Meu coração encolhia-se diante do novo mistério de Elêusis.
Elêusis tinha o hábito de morrer. Assumia diariamente novas formas. Um espetáculo a que eu ia me acostumando. Sem jamais saber se ela era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que me contemplava. Ou havia se transformado em água de um rio em tormenta, para deste modo viver um estado difícil.
Sempre lhe perguntei se não seria esta dor exagerada. Ela se esfregava na grama, até eu perder de vista. Já de volta o seu sorriso cancelava palavras. Mas eu me comprazia olhando em torno. Havia a certeza de Elêusis ocupar todas as coisas. Porém arrancando uma Pêra cujos delicados contornos recordavam os seios de Elêusis, eu surpreendia o protesto aflito da fruta. Procurava então investigar-se involuntariamente havia mutilado Elêusis. Afligia-me que tardasse seu regresso às estruturas humanas. Cedia-lhe todo o meu tempo, até verificar que desta vez não havia ela visitado a fruta, e eu a poupara.
Não era fácil tocar nos objetos sem esquecer que de algum modo eu poderia feri-la. Às vezes, eu pensava se teria ela inventado esses jogos para me perturbar, ou simplesmente obedecera às suas virtudes de camaleão. Jamais admitiu se além de mim, alguém mais ousara confessar estes encantos, seu jeito atrevido de assumir a natureza.
Eu estabelecera em seus corpos os pintos cardeais, as estações climáticas. E em minucioso exame procurava descobrir de que fenda do seu corpo havia saído o coleho que eu havia surpeendido com o mesmo olhar de Elêusis.
Suspeitava que toda ela era mutável. suas, seu ventre de cristal, a carne inteira hábel convertendo-se em razí para amparar a ideia de abundância. Ela apreciava a sondagem em que o desejo havia evaporado, e me via livre na fantasia. Tocava comvida meus cabelos e os batizava: pêlo de andorinha. Um capricho revelando que ainda fugazmente havia ela um dia habitado aquela espécie. Mas, eu me sabia de origem terrena, e ainda que a quisesse copiar não passaria de um corpo que o espelho confirmava escravo e de recursos modestos,
À noite Elêusis sofria transformações mais profundas. Nunca porém se recolhendo vestígios com que a localizar. Onde ela se estenderia, em que mineral se fizera. Como encontrar seu olhar de exaltada melancolia, que bem se compreendia por adotar ela sem querer formar repugnantes, quantas vezes permanecendo em tais estados por tempo indterminado, mesmo correndo o risco de jamis regressar ao aspecto humano. Também sua rica natureza estava sujeita a equívocos. Teria u dia ferido animais miúdos, como se tivesse dentes longos, patas, reduzida ao poder de fera.
Eu a procurei sem falhar todas as noites jamais perdendo a esperança. Onde ela estivesse eu devia estar. Pisando o solo que Elêusis tornava mágico, por praticar magias. Para dar-lhe prazer, eu me fingia peixe, nadando apropriava-me do modo íntimo de quem possui guelras. Cuidando para que meu gensto não se confundisse com a aranha, não pretendia assustar Elêusis, ou desperta-lhe lembranças difíceis.
Eu me dizia não ser Elêusisa única entre os mortais a abandonar o corpo na promessa de uma outra forma, pois não a estava eu imitando? Seu poder eu perdoava por já não viver sem ela, aquela brincadeira de desaparecer eu gritando Elêusis. Embora voltasse sempre trouxe um olhar diferente. Não brinque, Elêusis, um dia ainda eu a proibirei de brincar.
Elêusis resolver partir. Conserva-se em retiro por três dias nas montanhas. Preparou queijo de cabra, nossa obcessão. E que outro alimento viera de tão longe, vencendo a antiguidade, arrastando sua sabedoria de pedra. ainda pão, cebola, e o vinho daquelas uvas que Elêusis e eu havíamos amassado até manchar nossos rostos. então eu a limpara com a língua em golpes ásperos, sem a ferir ou transmitir doença. Não se esqueceu de manta, que a teceu por uma semana imitando Penélope, sem admitir o gesto escravo da outra, abdicar da sua liberdade. Talvez ela soubesse que se eu não vencia mar egeu, competia-lhe o domínio destas águas.
Não se esqueja jamais, nossas armas são idênticas, ela me dissera há muito tempo. E se foi sem despedida. Nem lhe pude perguntar você vai ampliar o seu poder, ou submeter-se às tentações. Quando quis segui-la ela disse: se me segue, não regresso nem sob forma de vento.
Desde então me fixava no padecimento de sua pele delicada, sua voracidade de abutre, seus recursos de terra. Ia me enfraquecendo sob o império daquela obstinação. Quando caiu o temporal pensei: ela bem merece. Esquecia seu milagre de incorporar-se à chuva ganhando força. Mas, confiava que nestes dias se obstivesse de atos desta natureza. Se elegera a montanha, a solidão, e o prazo de três dias, seguramente pretendera pela primeira vez assumir os riscos do corpo humano.
Sim, eu confiava que Elêusis sofresse, Elêusis resistisse à própria formosura, simplesmente submissa a uma imagem sem reflexos e que não se repetiria. Assim talvez perdesse de ingressar na natureza laheia, para conforma-se com os limites do seu corpo, e a dor a amansasse.
Uma difícil cruzada, tudo podendo acontecer. Até Elêusis perder na paixão de ser o que não era, e esquecer a fórmula que habitualmente a conduzia a seu estado anterior, e que eu conhecia. Nunca mais regressando, ou regressaria sob forma não identificada, eu esbarrava nela sem a reconhcer, Elêusis com dificuldades de explicar a sua perdição.
Eles se arrastavam lentos, aqueles dias. Eu apaenas deixava a casa para visitar o jardim. Dali se enxergava a montanha onde estaria Elêusis, quem sabe cravada nas pedras. As divindades outrora ali se reuniam. Elêusis as revenciaria sem dúvida. Nunca foi o que se conhece, eu a explicava. Do jardim, eu buscava afastar insetos, distância, conquistar visão de águia, para a ver dormindo, ah, a sua fantasia sempre me alimentou.
Jamais tranquei a porta. E não por Elêusis, ela jamais interromperia suas cerimônias por mim. Mas quando o desespero me obrigava a olhar as montanhas, eu alcançava o jardim sem enfrentar obstáculos. Somente algumas horas após o terceiro dia, descobri. Elêusis mastigando frutas sobre uma árvore. E não se equivocara de árvore, conhecia-as todas. Aquela sempre fora a sua eleita. Dizia que mesmo entre os minerais havia o mais amado, quanto aos vegetais os catalogava com uma estima oscilante. E dentre as criaturas, qual a amada, perguntei-lhe com invencível aflição. Ela sorriu querendo expressar quem mais senão você. rimos naquela tarde como só voltaríamos a rir quando me trouxe de presente, em vez da sacola em que vinha há muito tempo trabalhando, um ovo longo, um ovo que eu jurava não ser de galinha, avestruz, pato, nenhum animal amigo o teria colecionado em suas vísceras.
Ela escandira: este é raro, o mais precioso, para isso venci todas as esécies, conheci defeitos, pujança, hesitações, como foi difícil trazer afinal a escuridão esta coisa santa. foi ela então mexendo com o rosto do mesmo modo que eu fazia quando não podia entender o que era acima das minhas forças. E porque eu percebi que por breves instantes estivera ela roubando a minha voz, as minhas palavras, os meus pensamentos, a longa letargia através da qualo eu venci a terra em busca de uma certa ordem, a ponto de mais um pouco ela exibir em seu corpo o meu corpo - começar a rir, rir porque tivemos medo, rir porque não teríamos suportado levar às últimas consequências aquela alegria.
Pedi licença para subir à arvore. Ela logo desceu, dispensando meu socorro. Sentou-se devagar, parecia cansada, o que eu atribuía á viagem. De nós dois, ela era o herói, cabiam-me os despojos abandonados, pois eu vivia do seu momento histórico. Você constrõi a minha história, confessei-lhe uma vez.
Nesta tardeu eu confiei que Elêusis viesse a mim dizendo: como difícil, ou, milagre, sem você perto para apreciar não tem graça. Percebi suas mãos trêmulas, em sucesivos movimentos alisava certas partes do corpo. Eu não sabia em que reino situá-la. Quem desaparece tanto tempo tem direito a regressar diferente, implantar por isto mesmo novos hávitos, vir uma outra pessoa. Eu corria todos os perigos, perder Elêusis sempre estivera no meu mapa, eu sabia desta verdade. Quando resolveu deitar-se, não se agitou como do seu sotume. Não consentiu que eu a tocasse. Pela manhã assumia uma docilidade jamais surpeendida nela. Durante dias agiu sem elasticidade.