sábado, 20 de março de 2010

O Sultão, Anywhere I Lay My Head

Não era um simples sultão, de poder reduzido, ou existência proscrita. Dominava precisamente vinte milhões de criaturas. E, por isso mesmo, seus hábitos não podiam deixar de refletir a intensidade do seu poder. Embora os cultivasse distraído, mesmo porque, a pretexto quem sabe de humanizar-se, dizia igualmente ter plantado árvores, dizimado espécies vivas, como qualquer de seus súditos.
Havia ele proibido em torno de si toda a manifestação exaltada, para se iludir de que o amavam sem regras. Ao mesmo tempo acomodara-se aos afetos como aceitava as bebidas que já pelas manhãs lhe eram conduzidas ao leito. Como medida de disciplina, impusera ao exagerado número de mulheres do seu harém um sistema, a não se transgredir pois a punição alcançava a pena máxima, pelo qual iam elas se sucedendo em ordem pelos seus aposentos, ainda que seu súbito desejo por alguma delas determinasse a alteração do rodízio. Era ele o primeiro a dar o exemplo, por se saber o único, entre vinte milhões, a estabelecer padrões exemplares.
Mas, após procriar dezenas de filhos, ter possuído tantas mulheres que o prazer já o confundia, e temporariamente dedicar-se a meninos de rara beleza, a natural dispersão destes atos o obrigou a refugiar-se em seus jardins, mais tempo que normalmente lhe tomaria uma simples meditação.
Claro que este proceder inquietou o grão-vizir. E chamado o sábio do reino para estudar o fenômeno, logo não hesitou em determinar a procedência do mal. Aquela nostalgia nada mais refletia senão a gloriosa maturidade do sultão. Acentuando o sábio que haveria ele de piorar à aproximação da velhice.
O grão-vizir não resistiu ao desespero. Ainda que ostentasse uma vida diariamente configurada no poder daquele homem, compreendia também ser amor os destroços que o sultão havia nele plantado. Uma estranha amizade, sem dúvida, em que se vira sempre ameaçado de morte, pois a fúria do sultão às vezes atingia reclamos tão extremados, sem porém deixar de cultivar os recursos da gratidão. Mas, se durante este aprendizado nenhuma verdade lhe foi permitida senão aquelas que o sultão fazia brotar do solo sagrado de si mesmo, havia-lhe ensinado em troca a apreciar a vida que ele, em sua generosidade soberana, impedia de reclamar. Do mesmo modo que a emoção do grão-vizir era secreta, a do sultão por sua vez engrandecida por jamais lhe cobrar uma dívida que seu poder antes cuidou de aumentar.
Como lhe havia assegurado o sábio ser aquele estigma a simples atuação de uma futura velhice, nada se podendo fazer para vencer matéria tão natural, perdeu-se o grão-vizir em meditações, sem deixar, no entanto, de consultar os ministros, que logo imaginaram um ciclo de festas e homenagens.
A verdade é que desde pequeno o sultão abolira homenagens, precocemente assim manifestando sua independência em relação ao poder. Argumentara numa de suas raras palestras que qualquer poder que pretendessem acrescentar-lhe nada mais seria senão a expressão de um poder a que sempre se habituara, porque nasceu entre ele e palha seleta; o poder que nele reconhecessem haveria de se tornar com os dias o poder que passavam a lhe dever; e o poder afinal que a sua natural inclinação para o comando não houvesse previsto ou mesmo determinado a conquistar, passaria a ser o poder que admitia a fraqueza, o que se tornava impossível uma vez que o próprio extrato do poder impedia esta doutrina.
Repelia a ostentação cuidada, a ostentação cujo início, organização, fissuras, ele pudesse perceber. Já não o atormentavam os delírios da multidão, as contínuas paternidades, os contornos e as montanhas do reino, sequer a concepção abusiva de dominar vinte milhões de criaturas, todas distribuídas em terras suas, respirando o ar seu, bebendo a água que ele consentia circular nos rios com limpeza regular.
Ainda reconhecendo sua austeridade, ordenou o grão-vizir que todos do reino contribuíssem com uma certa quantidade de ouro e pedras preciosas, visando à confecção da mais poderosa espada que o mundo conheceu, adorno que além de simbolizar naturalmente o poder, talvez viesse a alegrar o coração severo do soberano. Porém, o material recolhido ultrapassou de muito o que haviam eles planejado, assim se viram obrigados a concluir que uma espada apenas, ainda imitando o tamanho e a pujança de um canhão, não viria a absorver aquele exagero. A solução seria fundir tantas espadas quanto ouro ainda restasse.
Avisado da cerimônia, o sultão entre grave e reflexivo olhou as espadas como se visitasse os mortos sagrados daquela terra, assunto pelo qual jamais se viu ele pronunciar, ou manifestar emoção. Parecia ter invadido aquele terreno da alma onde a existência do prazer passa a depender de tantos absurdos, ou atinge ele o triunfo se pudesse gritar sem temer a voz e o resultado do som. Abandonou os salões e por longos dias absteve-se de frequentar mesmo os seus jardins preferidos.
Apesar do seu doloroso estigma, acedeu em comparecer à última das homenagens programadas no propósito de o tornar feliz. Quando se iriam sacrificar diante do povo aglomerado na praça as mais lindas virgens do reino, exatamente sete delas. E dava pena observá-las ao longo do altar, os seios exibindo uma paisagem de ourivesaria e repouso. No entanto, logo que se imolou a primeira virgem, imediatamente o rosto do sultão, até o momento grave como uma pedra, sofreu uma profunda alteração. E não que se deixasse atingir pelo sangue ali esbanjando-se à medida que a faca experimentava o corpo tenro, mas pela presença solitária de um pássaro, cujo voo desfrutava de uma liberdade que parecia degenerar de tal modo exibia-se. E que unicamente após destacar as qualidades essenciais da sua espécie, pousou precisamente no galho da árvore cuja sombra protegia o sultão.
No entanto, longe deste atrevimento precipitar os sentimentos amargos do sultão, afinal esta atitude não se refletia no pão diário daquele reino, mais exaltou-lhe o interesse. E por obedecer a uma fatalidade que agia tão poderosa a ponto de confundir-se com o que ele mesmo não definia, foi dispensando a vergonha para investigar aquele animal, na exibição de um fervor incomum entre homem e pássaro.
Por sua vez o povo, desprezando o sacríficio das virgens, passara a imitar o sultão, todo o humano interesse naquela miniatura alada. Sem uma voz lamentar a matança em que não se punha qualquer apreciação. Via-se no sultão a apoteose de um sentimento. Olhava ele o pássaro tão firmemente como se em vez de mulheres agora passasse a desejar animais. Aquele pássaro pequeno e soberbo, acrescente-se.
Mas, entretido no pavor de perdê-lo, ia o sultão reconhecendo naquela presença um insulto que lhe cabia medir. Não exatamente um insulto, quem sabe mesmo não seria aquele pássaro a sua própria liberdade agora agonizante entre os excessos da sua vida. Agitou-se delicado, pois não lhe era fácil esconder o sentimento que o fazia fruir o equívoco, o estranho aviso da derrota. A raiva que afinal surgiu em seu peito parecia-lhe de natureza grata. Abastecia-lhe o corpo com a impertinência generosa de que se depende para afinar os metais. E ainda que fosse colocado na vida do seu corpo a súmula dos perigos e das omissões, os dons enfim que iam mesmo se tornando familiares, através dos seus olhos assumia o pássaro a causa universal de todos os ofendidos. Diligente e raro, dominava ele o seu reino.
Assim ia-se desenvolvendo a guerra dos santos, mais do que disputarem a santidade, lutavam pelo amor indispensável para se assumir qualquer crime. Em breve, homem e pássaro se apurariam no nojo que mesmo matéria impecável desperta quando se morre por dentro das coisas limpas. Mas, depois de experimentar o sultão o sentimento da raiva, e não podendo conviver indefinidamente com ela pois que nele os sentimentos abrasavam-se tão perfeitos que se supunham início e fim de todo atrevimento - foi o medo mascarando o seu rosto. Não têmia exatamente perdê-lo, esta continuava sendo a sua verdade, temia sim a certeza de que esta perda se daria breve, como tomba o fruto da árvore e apesar de natural sofre a agonia da queda, o despreendimento dos galhos uterinos, que é a sua perfeição - e que este tempo breve talvez fosse a anunciação do inverno, a harmonia dos inimigos em posição de guerra, ou mesmo o ventre de uma mulher produzindo envergonhado o que seu sexo estéril nela depositara, numa simulação de bravura.
Criou-se pela primeira vez em sua vida uma rara expectativa. E porque sabia, pois seu poder baseava-se em certas certezas, agonizava na dúvida de tanto amor. De um amor que poderia florescer como nenhum outro, como nenhum outro o ampararia na sua verdade aguda. Dependia agora da excelência de uma dor para provar um sentimento, da admissão do mesmo amor para aceitar esta audácia e não sucumbir a seu fascínio.
Ele começava a compreender que a ação daquele pássaro, acima de significar a morte para a sua casa, o estava introduzindo no reino das ciências exatas e dos depoimentos isentos. Uma sabedoria excessiva para ele e seu trono. E era pássaro o único homem que o enfrentava por se ter tornado o pássaro o homem quem sonhou um dia encontrar, que se introduzia como inimigo por dispensar a sua amizade, desprezar seu caráter, seu poder, os inúmeros filhos e mulheres, seus maravilhosos jardins. Este o homem raro que o sultão inventava no pássaro, e ele unicamente conhecia a loucura de sua manobra.
Ainda buscou controlar-se, distrair o animal com seu desapego, falta de atenção. Como se lhe dissesse o tempo todo, olha, fique mais um pouco sobre a minha cabeça, porque eu não preciso de você, não há entre nós o menor compromisso, vê como ainda é livre embora eu o esteja amando?
Parece-lhe a paisagem exaltada sob o império da sua liberdade solitária, uma vida envergonhada que passava agora a depender de façanhas imortais. Antes, a liberdade fora o imperativo do seu dever. Nestes instantes denunciava o avanço de uma doença a que todos de sua raça estariam sujeitos sob a graça de uma hereditariedade distraída. Valia mais o pássaro do que vinte milhões do seu reino, e ainda não perdoava aquela ameaça que lhe impusera o sentimento de um tesouro perdido dentro das palpitações de uma terra reservada, especialmente ele que até então rejeitava a claridade de todo sol universal.
Ele moveu as asas delicado. A sua frase colorida solidária. Mas arma agressiva embora inocente. E o sultão já não mais aceitando os atropelos da vida, a suprema tentação de modificar a ordem e as obrigações de um estábulo onde os animais instalam-se dominantes, afinal atingiu o ódio e ingressou simples e grosseiro no reino dos mortais. A nova condição trazia-lhe a regra abominável de sobreviver. Obrigado a pedir ao povo, ensine-me as regras mais simples, sei bem que vocês a conhecem todas e só assim poderei frequentar, protegido, este mundo de duendes e feiticeiros. Mas o orgulho da medalha o deteve. Apenas o grão-vizir e seu tímido amor perceberam a emancipação que ameaçava o reino caso o pássaro triunfasse a ponto do povo vir a compreender aquela lucidez alada que despertara no sultão um olhar iluminado e perdido, como em nenhum momento se percebera no mesmo homem.
Mas aquele pássaro obstinado, sobre o galho que se tornara seu paraíso, fazia suas vantagens reverberarem para que todos as conhecessem. E movido ainda pelo poder que era o poder que só ele compreendia, que conjurava qualquer ação futura, perdeu-se no espaço num voo em tudo igual aos que os de sua raça, executam diariamente, e nem por isto merecem a morte. Tamanho o seu conforto em pleno voo que se duvidou que ele ou outro, ainda que buscasse proteção nas próximas árvores, pudesse sobreviver após experiência tão poderosa.
O sultão ainda ergueu o braço, talvez lhe pedisse, ainda não, um pouco mais por favor, não compreende que a partir de você inicia-se a minha próxima compreensão! Logo fez grave como quem acaba de criar uma raça e nem a apreciação de uma espécie isenta de defeitos lhe desse alento. A indiferença ia-se tornando uma postura singela. Sua valentia no entanto era rara naqueles dias.
Quando o enterraram, seu filho mais velho assumiu o poder. O poder, aliás, sempre estivera naquela família.

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