sábado, 6 de março de 2010

Elêusis tinha o hábito de morrer. Assumia diariamente novas formas. Um espetáculo a que eu ia me acostumando. Sem jamais saber se ela era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que me contemplava. Ou havia se transformado em água de um rio em tormenta, para deste modo viver um estado difícil.
Sempre lhe perguntei se não seria esta dor exagerada. Ela se esfregava na grama, até eu perder de vista. Já de volta o seu sorriso cancelava palavras. Mas eu me comprazia olhando em torno. Havia a certeza de Elêusis ocupar todas as coisas. Porém arrancando uma Pêra cujos delicados contornos recordavam os seios de Elêusis, eu surpreendia o protesto aflito da fruta. Procurava então investigar-se involuntariamente havia mutilado Elêusis. Afligia-me que tardasse seu regresso às estruturas humanas. Cedia-lhe todo o meu tempo, até verificar que desta vez não havia ela visitado a fruta, e eu a poupara.
Não era fácil tocar nos objetos sem esquecer que de algum modo eu poderia feri-la. Às vezes, eu pensava se teria ela inventado esses jogos para me perturbar, ou simplesmente obedecera às suas virtudes de camaleão. Jamais admitiu se além de mim, alguém mais ousara confessar estes encantos, seu jeito atrevido de assumir a natureza.
Eu estabelecera em seus corpos os pintos cardeais, as estações climáticas. E em minucioso exame procurava descobrir de que fenda do seu corpo havia saído o coleho que eu havia surpeendido com o mesmo olhar de Elêusis.
Suspeitava que toda ela era mutável. suas, seu ventre de cristal, a carne inteira hábel convertendo-se em razí para amparar a ideia de abundância. Ela apreciava a sondagem em que o desejo havia evaporado, e me via livre na fantasia. Tocava comvida meus cabelos e os batizava: pêlo de andorinha. Um capricho revelando que ainda fugazmente havia ela um dia habitado aquela espécie. Mas, eu me sabia de origem terrena, e ainda que a quisesse copiar não passaria de um corpo que o espelho confirmava escravo e de recursos modestos,
À noite Elêusis sofria transformações mais profundas. Nunca porém se recolhendo vestígios com que a localizar. Onde ela se estenderia, em que mineral se fizera. Como encontrar seu olhar de exaltada melancolia, que bem se compreendia por adotar ela sem querer formar repugnantes, quantas vezes permanecendo em tais estados por tempo indterminado, mesmo correndo o risco de jamis regressar ao aspecto humano. Também sua rica natureza estava sujeita a equívocos. Teria u dia ferido animais miúdos, como se tivesse dentes longos, patas, reduzida ao poder de fera.
Eu a procurei sem falhar todas as noites jamais perdendo a esperança. Onde ela estivesse eu devia estar. Pisando o solo que Elêusis tornava mágico, por praticar magias. Para dar-lhe prazer, eu me fingia peixe, nadando apropriava-me do modo íntimo de quem possui guelras. Cuidando para que meu gensto não se confundisse com a aranha, não pretendia assustar Elêusis, ou desperta-lhe lembranças difíceis.
Eu me dizia não ser Elêusisa única entre os mortais a abandonar o corpo na promessa de uma outra forma, pois não a estava eu imitando? Seu poder eu perdoava por já não viver sem ela, aquela brincadeira de desaparecer eu gritando Elêusis. Embora voltasse sempre trouxe um olhar diferente. Não brinque, Elêusis, um dia ainda eu a proibirei de brincar.
Elêusis resolver partir. Conserva-se em retiro por três dias nas montanhas. Preparou queijo de cabra, nossa obcessão. E que outro alimento viera de tão longe, vencendo a antiguidade, arrastando sua sabedoria de pedra. ainda pão, cebola, e o vinho daquelas uvas que Elêusis e eu havíamos amassado até manchar nossos rostos. então eu a limpara com a língua em golpes ásperos, sem a ferir ou transmitir doença. Não se esqueceu de manta, que a teceu por uma semana imitando Penélope, sem admitir o gesto escravo da outra, abdicar da sua liberdade. Talvez ela soubesse que se eu não vencia mar egeu, competia-lhe o domínio destas águas.
Não se esqueja jamais, nossas armas são idênticas, ela me dissera há muito tempo. E se foi sem despedida. Nem lhe pude perguntar você vai ampliar o seu poder, ou submeter-se às tentações. Quando quis segui-la ela disse: se me segue, não regresso nem sob forma de vento.
Desde então me fixava no padecimento de sua pele delicada, sua voracidade de abutre, seus recursos de terra. Ia me enfraquecendo sob o império daquela obstinação. Quando caiu o temporal pensei: ela bem merece. Esquecia seu milagre de incorporar-se à chuva ganhando força. Mas, confiava que nestes dias se obstivesse de atos desta natureza. Se elegera a montanha, a solidão, e o prazo de três dias, seguramente pretendera pela primeira vez assumir os riscos do corpo humano.
Sim, eu confiava que Elêusis sofresse, Elêusis resistisse à própria formosura, simplesmente submissa a uma imagem sem reflexos e que não se repetiria. Assim talvez perdesse de ingressar na natureza laheia, para conforma-se com os limites do seu corpo, e a dor a amansasse.
Uma difícil cruzada, tudo podendo acontecer. Até Elêusis perder na paixão de ser o que não era, e esquecer a fórmula que habitualmente a conduzia a seu estado anterior, e que eu conhecia. Nunca mais regressando, ou regressaria sob forma não identificada, eu esbarrava nela sem a reconhcer, Elêusis com dificuldades de explicar a sua perdição.
Eles se arrastavam lentos, aqueles dias. Eu apaenas deixava a casa para visitar o jardim. Dali se enxergava a montanha onde estaria Elêusis, quem sabe cravada nas pedras. As divindades outrora ali se reuniam. Elêusis as revenciaria sem dúvida. Nunca foi o que se conhece, eu a explicava. Do jardim, eu buscava afastar insetos, distância, conquistar visão de águia, para a ver dormindo, ah, a sua fantasia sempre me alimentou.
Jamais tranquei a porta. E não por Elêusis, ela jamais interromperia suas cerimônias por mim. Mas quando o desespero me obrigava a olhar as montanhas, eu alcançava o jardim sem enfrentar obstáculos. Somente algumas horas após o terceiro dia, descobri. Elêusis mastigando frutas sobre uma árvore. E não se equivocara de árvore, conhecia-as todas. Aquela sempre fora a sua eleita. Dizia que mesmo entre os minerais havia o mais amado, quanto aos vegetais os catalogava com uma estima oscilante. E dentre as criaturas, qual a amada, perguntei-lhe com invencível aflição. Ela sorriu querendo expressar quem mais senão você. rimos naquela tarde como só voltaríamos a rir quando me trouxe de presente, em vez da sacola em que vinha há muito tempo trabalhando, um ovo longo, um ovo que eu jurava não ser de galinha, avestruz, pato, nenhum animal amigo o teria colecionado em suas vísceras.
Ela escandira: este é raro, o mais precioso, para isso venci todas as esécies, conheci defeitos, pujança, hesitações, como foi difícil trazer afinal a escuridão esta coisa santa. foi ela então mexendo com o rosto do mesmo modo que eu fazia quando não podia entender o que era acima das minhas forças. E porque eu percebi que por breves instantes estivera ela roubando a minha voz, as minhas palavras, os meus pensamentos, a longa letargia através da qualo eu venci a terra em busca de uma certa ordem, a ponto de mais um pouco ela exibir em seu corpo o meu corpo - começar a rir, rir porque tivemos medo, rir porque não teríamos suportado levar às últimas consequências aquela alegria.
Pedi licença para subir à arvore. Ela logo desceu, dispensando meu socorro. Sentou-se devagar, parecia cansada, o que eu atribuía á viagem. De nós dois, ela era o herói, cabiam-me os despojos abandonados, pois eu vivia do seu momento histórico. Você constrõi a minha história, confessei-lhe uma vez.
Nesta tardeu eu confiei que Elêusis viesse a mim dizendo: como difícil, ou, milagre, sem você perto para apreciar não tem graça. Percebi suas mãos trêmulas, em sucesivos movimentos alisava certas partes do corpo. Eu não sabia em que reino situá-la. Quem desaparece tanto tempo tem direito a regressar diferente, implantar por isto mesmo novos hávitos, vir uma outra pessoa. Eu corria todos os perigos, perder Elêusis sempre estivera no meu mapa, eu sabia desta verdade. Quando resolveu deitar-se, não se agitou como do seu sotume. Não consentiu que eu a tocasse. Pela manhã assumia uma docilidade jamais surpeendida nela. Durante dias agiu sem elasticidade.

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