terça-feira, 15 de abril de 2008

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Medo de Voar

Sinto-me o mínimo a vontade que alguém possa querer (estar). Em contraponto, me ponho a fazer, mas como se não fosse a única preocupação d'agora. Me preocupo, no entanto, também, na recolha do lixo que esbanja no transbordar da borda cercada dum banheiro de luz mofada. O que nada é. No mais, me preocupo que, logo, ao amanhecer da noite repulsada de meu olho, não posso esquecer. Ou fingir esquecer o que não tenho feito. Preciso fazer supermercado.
Fôra, passo dado, lixo recolhido, dentes escovados, a água jogada no rosto, gotas d'água - dessas, pôde sentir as fugidas escorrerem pelos braços até as pontas dos cotovelos. Suficiente a secar-se. Secara o rosto, voltou-se contra ela e acordou-a. Ajudou. Espaireceu o anterior, parece, e nem se deu ao trabalho de acordá-la. Fiz, apenas levantei.
No primeiro contato, não considero este o primeiro: apreensão faltou. Bom ou ruim? Vamos, há um dia todo pela frente. E, quem diria que, ao sair do prédio e se propor à luz, que cega, ela receberia um convite, um soberbo convite, - me permito demonstrá-la dessa forma tão, tão... familiar e como se não, ao avesso. Posso sentir a verdade ecoar, o organismo dela pulsa. Sempre me pedira isso. É até fantasioso. - convite a voar.
Foi-se a voar, jamais recusaria. Sentir o vento nas entranhas era o que mais te excitava. Já houvera feito antes. No entanto há tempos não sentia o estremecido da pele. O durante estendeu-se por mais..., aproximadamente três minutos. Era o fim, se aproximava. Temia, mas não pensava. Só sentia.
O querer formou-se depois. Teria querido, se quisesse. Mas não era a hora. Contornar a paisagem em âmbito de flor era sem graça. Sua ganância não era sequer maliciosa.
O aflito movimento das asas remanchava ao vento, fizera o esforço da volta para depositá-la de onde a tirou. A ave a incomodava. Foi então que, num instante de desatenção da ave, ela se soltou e saltou. Abriu as asas, as próprias. Pousou. Tal como se pousa leve num regato de asfalto. Como é possível?! O limitar da guia, do aterramento, da ciclovia? Voltara a cegar-se. Voltara a cegar-se. Pela íris sua, contrapunha todas as luzes que nunca teria querido ver e cores que haveria querido tocar. Ter e querer vão de pesares incomuns. E o que importa já que as tinha?
Pouco antes que o pouso forçado acontecesse, num dejavu, apeou o corpo a enganar o vento. Revirou-se. E com um movimento brusco bateu as asas com força. Força essa descabida, que nunca tivera. Voou por toda a orla que poderia ver a olho nu, de uma praia à outra, e outra, e outra. O cheiro de peixe das pontas das praias lhe agradava. Queria chegar sempre às pontas e recomeçar dali, para a mais próxima, o início da outra praia. O recomeço. Almejava o recomeço. Ela sempre soubera, mas fingia, lhe doía.
Ao fim da orla, dera meia-volta e pôs-se a fazer tudo, sentir tudo, desde o início.